Brasil: mais de 500 - Natureza e cultura
por
Donaldo Schuler
Embora o termo cultura ainda não exista, invenção do século XVIII que é, a noção de oposição da natureza à cultura e à civilização se esboça como nitidez. Os indígenas (sem governo, sem religião, sem cortesia...) pertencem à natureza. O esforço de impor-lhes hábitos civilizados reitera-se já nos primeiros contatos. Quanto empenho para convencê-los da conveniência de esconderem a nudez! Espera-se que a missa desperte neles sentimentos religiosos. O ruidoso ajuntamento indiático, qualificado de bárbaro, deverá ser emendado por fala ponderada, própria de homens cultivados. Em lugar da manifestação espontânea, a etiqueta.
Ao descrever os índios, Caminha observa que "nenhum deles era fanado (circuncidado) mas todos assim coma nós". O "como nós" é expressivo, visto que a circuncisão abria barreiras. Cincuncisos apresentavam-se judeus e árabes, culturas repelidas e combatidas. A ausência de circuncisão nos moradores das terras descobertas franqueava acesso negado a povos com os quais os portugueses conviviam no Europa. Acontece que a circuncisão não se restringe à incisão feita no membro viril. A Bíblia fala em circuncisão dos ouvidos, dos lábios e do coração. Atento ao corpo dos silvícolas, Caminha, reticente nas informações sobre a natureza, oferece de um botocudo descrição exemplar. Semelhanças e diferenças com os europeus orientam a descrição. Os traços dos descobridores figuram como padrão de perfeição. "Bons" são os rostos e os narizes por não se distanciarem do modelo. A tez escura não merece apreço. Mais do que caraterísticas naturais, chama atenção a "circuncisão" dos lábios. A diferença naqueles tempos ergue embaraços à comunicação. O osso introduzido no lábio inferior não afasta menos do que os sons que soam bárbaros aos ouvidos dos portugueses. Observa Caminha que o adereço introduzido no lábio não prejudicava o falar, o comer e o beber. Na verdade, falar comer e beber colocam-se na mesma categoria do osso, marcas da cultura com que não se podia conviver. A circuncisão, que deveria ser o lugar de passagem, ponto em que povos se encontram para confraternizar, excluía. Vendo os índios, os navegadores começam a reconhecer sua própria limitação (castração): comparadas às índias, as européias se envergonhariam de si mesmas, a amizade dos índios é mais sincera que a dos portugueses.
Embora as deficiências se anunciem, os portugueses se têm como nação central. Só quando perdemos a ilusão da centralidade, reconhecemos as marcas que nos colocam ao nível dos outros, diferenciando-nos. Só então nossas circuncisões, reconhecidas e expostas, abrirão sendas que aproximem.
A ciência munira os navegadores de instrumentos para atravessar os mares, mas para vencer barreiras culturais ainda não existiam aparelhos da mesma precisão.
Minucioso na caraterização e no comportamento da estranha gente, Caminha torna-se reticente e incorreto quando anota observações sobre flora e fauna ("ervas compridas, chamadas botelhos pelos mareantes", "rabo-de-asno", "grandes arvoredos", "muitas palmeiras, não muito altas, de muitos bons palmitos", "papagaios" ,"pombas seixas").Iguala-se nisso a Colombo. Entre os motivos da imprecisão está o estágio precário em que se encontra a zoologia e a botânica na virada do século em contraste à ênfase dada ao homem nos ensaios e nas artes. Os pintores do século XV retratam a eminência dos caracteres humanos sobre um fundo em que plantas e animais, quando presentes, comparecem inexpressivos e diminutos. A poesia bucólica, que ambienta conflitos sentimentais e paisagem campestre não se desprende de estereótipos copiados de Virgílio. A épica medieval, ainda lida, precisa ao caraterizar trajes e armas, não se demora na descrição da paisagem. Na Itália já sopram outros ares. São Francisco de Assis dirige saudações amigas à natureza desdemonizada. Dante vê o brilho trêmulo nos movimentos do mar e ouve o rugir da tempestade na floresta. Petrarca emociona-se ao escalar um monte. A pintura flamenga de Hubert e Jan van Eyck representa, na entrada do XV, paisagens de interesse pictórico autônomo. Mas levará algum tempo para que essas experiências, ainda isoladas e indecisas, se generalizem. Destacando o homem em detrimento da natureza, Caminha se comporta como representante do seu tempo.
A natureza comparece, mas subordinada ao homem. Caminha, que passa em silêncio o comportamento do mar durante a travessia, alude a ele quando Niciolau Coelho procura comunicar-se com os indígenas. Observa que "o grande estrondo das ondas que quebravam na praia" dificultava a inteligibilidade dos sons emitidos pelos índios. O mar é lembrado, não pela beleza do espetáculo, mas como empecilho às intenções de comunicação. Vento e chuva são lembrados quando castigam as naus. À natureza se recorre como índice de informações sobre a presença de terra, de riquezas, de possibilidades de exploração. Para a natureza fora dessa subordinação não há vista.
Os índios resistiram atiladamente à infiltração dos estranhos. E com razão. As conseqüências da espionagem nos conta o triste fim do império asteca, esmagado por um punhado de aventureiros comandados por Cortês. Caminha não diz nada sobre os sentimentos dos degredados. De como não é cômoda a posição de quem se sente rejeitado por culturas antagônicas nos falam Martin Fierro, o poema de Hernandez e o romance de Maíra de Darcy Ribeiro. Indícios desse conflito, que atravessa os séculos, temos no primeiro contato de portugueses com nativos. Para dois grumetes, recrutados, ao que tudo indica, à força, a floresta oferecia mais atrativos do que os trabalhos na gloriosa frota de Cabral. Fugiram para não mais voltar.
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